domingo, 21 de dezembro de 2008

A nova cara da língua portuguesa



Reforma ortográfica entra em vigor no começo de 2009, fechando as negociações iniciadas em 1990. Além do Brasil, sete países vão aderir às modificações na escrita

Ano novo, língua nova. Já no primeiro dia de 2009, quem esquentar o restinho da ceia no micro-ondas vai ter que levar o hífen junto. Os que vão passar as férias na praia, com certeza vão pegar um voo sem acento. Com todo cuidado para não ter enjoo. E nas cidades do interior, toda a atenção é pouca: pão com linguiça mantém o sabor mineiro, e agora vem sem trema. A ideia de reformar o idioma português é boa, mas nem por isso o leitor deve ficar tranquilo. Na hora de escrever, é preciso observar as regras em vigor para encontrar uma boa saída, palavra essa que continua com a mesma grafia.

As mudanças da língua passam a valer a partir de 1º de janeiro, embora haja um período de adequação às normas até dezembro de 2012. Até lá, as duas formas vão conviver em harmonia e as modificações não poderão ser cobradas em vestibulares, concursos e provas escolares. A reforma ortográfica vai afetar cerca de 3 mil palavras, o que eqüivale a 0,5% dos verbetes reconhecidos oficialmente no idioma brasileiro. Entre as principais alterações estão o aumento do alfabeto de 23 para 26 letras, com a inclusão do k, w e y; a extinção do trema; e a criação de novas regras de acentuação (veja arte).

O ponto mais polêmico da reforma, o hífen, é o único que ainda não está completamente definido. Apenas em fevereiro, quando a Academia Brasileira de Letras (ABL) deve divulgar um documento oficial, é que as regras de uso do famigerado tracinho serão esclarecidas. Até a publicação do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp), vão permanecer as dúvidas e as controvérsias sobre quais expressões e verbetes devem ser separados por hífen e quais prefixos vão exigir sempre a presença do sinal gráfico.

ACORDO As modificações fazem parte de um acordo ortográfico firmado em 1990 pelos integrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)- Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Guiné-Bissau. Anos mais tarde, o Timor Leste também assinou a unificação da língua. Mas os prazos de implantação das novas regras nunca foram cumpridos e o governo brasileiro sempre adiou as mudanças por falta de adesão de Portugal. Essa situação mudou em março, quando Lisboa anunciou o desejo de fazer parte da reforma. Em setembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou decreto com o cronograma de aplicação do acordo no país.

As novidades, fundamentadas em 20 bases de mudanças, interferem apenas na grafia das palavras. Portanto, atingem em cheio as letras, acentos e sinais gráficos, como o hífen e o trema, mas não alteram em nada a pronúncia, a conjugação, a semântica e a didática da língua. A expectativa é de que a reforma favoreça a união entre os países de língua portuguesa e facilite a publicação de documentos oficiais em fóruns internacionais.

"O português é a única língua que, nos encontros da Organização das Nações Unidas (ONU), produz duas versões: uma no idioma do Brasil, outra no de Portugal. Mas a reforma mantém critérios de flexibilidade, ou seja, os portugueses vão continuar escrevendo "sector", "acto", "António", enquanto nós usamos "setor", "ato" e "Antônio". Portanto, não conseguimos padronizar, uniformizar a grafia das línguas", diz a especialista em língua portuguesa Dad Squarisi, jornalista e autora de uma série de livros, entre eles o Manual de Redação e Estilo dos Diários Associados.

Segundo Dad, que também assina a coluna Dicas de Português do Estado de Minas e é editora de Opinião do jornal Correio Braziliense, os países lusófonos perderam uma boa oportunidade de realmente unificar o idioma. "Seria preciso mais negociação, discussão e entendimento entre as nações. Soube que, antes de assinar qualquer documento, o presidente Lula pergunta em que isso beneficia os pobres. Digo que a reforma não beneficia a língua, por não ter atingido seu objetivo, e ainda prejudica o pobre. Pais de família que fizeram enorme sacrifício para comprar um dicionário ou uma gramática para os filhos agora vão ter que jogar tudo no lixo", lamenta.


Mudança nas escolas vai demorar um ano


A reforma da língua portuguesa vai chegar com pelo menos um ano de atraso às salas de aula de todo o Brasil. Isso porque as novas regras ortográficas só aparecerão nos livros didáticos a partir de 2010. Segundo cronograma do Ministério da Educação (MEC), os alunos das séries iniciais (1ª a 5ª) do ensino fundamental vão receber o material escolar reformulado em janeiro de 2010. Os estudantes dos anos finais (6º ao 9º) serão contemplados com a mudança em 2011, e os de nível médio terão que aguardar até 2012.


De acordo com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão vinculado ao MEC, o prazo de entrega do material didático foi calculado com base na necessidade de adaptação das editoras. "Os livros são comprados para durar três anos. Portanto, estamos seguindo o calendário normal de aquisição e distribuição para as instituições públicas de ensino. Apesar disso, acredito que a reforma deve chegar antes aos alunos, pois todos os meios de comunicação vão adotar as novas regras a partir de janeiro do ano que vem", explica o diretor de Ações Educacionais do FNDE, Rafael Torino.

Já os novos dicionários, adaptados à reforma ortográfica, serão distribuídos ainda em 2009. Segundo Rafael, o MEC estima investir R$ 90 milhões na compra do material, que vai ser entregue a 1 milhão de salas de aula em todo o país, contemplando um universo de 37 milhões de alunos da rede pública. Em Minas, a nova coleção deve chegar às mãos de 3,8 milhões de estudantes dos ensinos fundamental e médio. A compra depende do lançamento de um edital pelo FNDE e o processo licitatório deve ser aberto depois da publicação, pela Academia Brasileira de Letras (ABL), da versão final das mudanças ortográficas.

O governo federal planeja adquirir três kits diferentes de glossários. Um para crianças de 6 a 8 anos, em fase de alfabetização, com descrições simples dos significados e um número máximo de 3 mil verbetes. Outro para alunos de até 10 anos, com até 10 mil palavras. E um terceiro, para ser usado dessa idade em diante, contendo de 19 a 35 mil expressões.

CAPACITAÇÃO Para receber os livros didáticos em 2010, com todas as mudanças na ponta da língua, os professores da rede estadual de Minas Gerais vão ser treinados a partir de fevereiro do ano que vem. Segundo a Secretaria de Estado de Educação, a capacitação faz parte da Rede de Formação dos profissionais de ensino. "Vamos trabalhar os conceitos básicos e, para os professores dos anos iniciais, foi elaborado o Guia do Alfabetizador. Na prática, a nova ortografia será adotada em 2010, quando chega o material didático, mas já começamos a preparação. Acredito que a adaptação será lenta, pois os alunos ainda vão ter que lidar com muitas obras literárias escritas de acordo com as regras antigas", afirma a subsecretária de Desenvolvimento da Educação Básica, Raquel Elizabete Souza Santos.

A Secretaria Municipal de Educação informou que a implantação do acordo ortográfico nas escolas de Belo Horizonte será discutida pela nova equipe de administração da capital, que toma em posse em janeiro. (GT)


Os problemas com o hífen


No Brasil, são 190,3 milhões de pessoas. Em Portugal, outros 10,5 milhões. E mais 20 milhões em países africanos e comunidades da Ásia. Ao todo, mais de 220 milhões falam o português e fazem do idioma o quinto mais falado do planeta, segundo o Ministério da Educação (MEC). Em outras palavras, quase 5% da população mundial está diante de uma encruzilhada: as mudanças na escrita, ainda uma grande interrogação na cabeça de estudantes, professores e até de especialistas no assunto.

A reforma ortográfica vai exigir esforço e dedicação dos interessados em aprender 20 novas regras e mais de uma dezena de exceções. A ampliação do alfabeto e a extinção do trema dão para tirar de letra. O fim do acento circunflexo nos hiatos êem e ôo também não é complicado, basta se acostumar à nova grafia de veem, creem, releem e voo, abençoo, perdoo. Já o fim dos acentos diferenciais de pelo, para, polo e pera, por exemplo, gera confusão. "A frase "Trânsito para BH" agora tem sentido duplo. Não sabemos se um grande número de veículos congestiona a cidade ou se há fluxo de carros direcionados à capital", alerta a especialista Dad Squarisi.

Mas o grande trava-línguas da reforma é mesmo o hífen. E não adianta tentar entender a lógica de uso do tracinho. Para escrever no padrão das novas regras do acordo ortográfico a única solução é decorar cada uma das normas. "O brasileiro já tem, de maneira geral, dificuldade no português. Agora, ele vai ter que entender as mudanças em algo que não conhece bem. Isso vai ser um caos. O lado positivo é que a reforma vai estimular, ou melhor, quase obrigar as pessoas a aprenderem mais sobre a língua. Mas o hífen, que sempre foi o grande complicador do idioma, não foi beneficiado em nada com a reforma", critica o professor de português José Nani Júnior, com mais de 35 anos de experiência na área.

Segundo o presidente da Comissão de Língua Portuguesa do MEC (Colip), Godofredo de Oliveira Neto, os pontos mais polêmicos só serão esclarecidos com a publicação do documento oficial da Academia Brasileira de Letras (ABL). "O acordo ortográfico é como uma lei. Depois de aprovada, ela precisa ser regulamentada e pode estar sujeita a emendas. A reforma tem alguns pontos sujeitos a dupla interpretação e a academia está reunida para bater o martelo sobre as dúvidas. Acredito que o acordo será importante par ajudar a reduzir o analfabetismo, pois os livros passarão a ter maior tiragem e preços mais acessíveis", afirma Godofredo.

OPINIÃO DIVIDIDA Nas salas de aula, as mudanças dividem a opinião dos alunos. Johner Zorzo Dornelles, de 17 anos, estudante do 3º ano do ensino médio, critica as novas regras de acentuação. "O nosso português quer ficar igual ao inglês, sem acentos? É tão bom quando a grafia das palavras nos ajuda a saber qual é a sílaba tônica. Isso facilita a pronúncia correta. A reforma complicou tudo e, por enquanto, estou evitando estudar as novidades. Vou prestar vestibular agora e as mudanças podem me confundir", lamenta o candidato a uma vaga em medicina.

Já para a colega dele Patrícia Andrade de Menezes, também de 17, o acordo ortográfico pode ajudar as crianças em fase de alfabetização. "Para os que estão começando a aprender a língua, a mudança vai ser boa. Mas, para quem já está num estágio mais avançado de aprendizado, escrever é um ato automático e vai ser um custo aprender as novas regras. Acredito que será necessário um bom tempo para todo mundo se adaptar", diz Patrícia. (GT)


O hífen, que sempre foi o grande complicador do idioma, não foi beneficiado em nada com a reforma

José Nani Júnior, professor de português


Principais mudanças na ortografia


1 - Alfabeto:

entram k, w e y

2 - O trema desaparece:

frequente, tranquilo, lingueta, linguiça

3 - Sai o circunflexo do ditongo ôo:

voo, abençoo, perdoo

4 - Circunflexo do hiato êem desaparece:

veem, creem, deem, releem

5 - Agudo do u tônico dos verbos some:

apaziguar (apazigue), averiguar (averigue), arguir (arguem)

6 - O i e u antecedidos de ditongo perdem o grampo:

feiura, baiuca

7 - Ditongos abertos éi, ói viram ei, oi:

ideia, joia (o acento permanece nas palavras oxítonas e monossílabos: papéis, herói, dói)

8 - Os acentos diferenciais somem:

pelo, para, polo, pera (mantém-se o circunflexo de pôde e do verbo pôr)

Exigem hífen sempre:

Os prefixos seguidos de h: anti-higiênico, super-homem, micro-história, extra-humano, co-herdeiro, proto-história, sobre-humano, ultra-heróico

Exceção: subumano

Além, aquém, ex, pós, pré, pró, recém, sem, vice: Além-mar, aquém-muros, ex-presidente, pós-graduação, pré-primário, pró-reitor, recém-chegado, sem-terra, vice-presidente

Prefixos terminados em vogal seguidos por palavra começada pela mesma vogal: anti-inflamatório, auto-observação, contra-ataque, micro-ondas, semi-internato

Exceção: co- se junta ao segundo elemento mesmo quando ele começa com o:coordenar, coobrigação

Prefixos terminados por consoante seguidos de palavra começada pela mesma consoante: hiper-rico, inter-racial, sub-bloco, super-resistente, super-romântico

Sub usa mais um hífen - com a palavra iniciada por r: sub-região, sub-raça

Os sufixos de origem tupi-guarani açu, guaçu, e mirim: amoré-guaçu, anajá-mirim, capim-açu

Rejeitam o hífen

Prefixos terminados em vogal diferente da vogal que se inicia o segundo elemento: aeroespacial, agroindústria, antieducação, autoescola, coedição, coautor, infraestrutura, plurianual, semiopaco

Nos prefixos terminados em vogal que se juntam a palavras começadas por r ou s, duplicam-se o r e o s para manter a pronúncia: antirrábico, antirrugas, antissocial, biorritmo, contrassenso, infrassom, microssistema, minissaia, neossocialismo, semirrobusto, ultrarrigoroso, ultrassom

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